quinta-feira, 23 de junho de 2011

"Sou um covarde, não posso aguentar a dor de ser feliz." (C. Monga)

                                         (fonte: equipe de liturgia do Dia Mundial de Oração da República de Camarões)

Célestin Monga, alto funcionário do banco mundial retrata no seu livro Niilismo e Negritude (2010) o que é passear pelo lugar onde nasceu (República dos Camarões) e sentir as disparidades entre o mundo em que nasceu e o mundo atual em que vive...

Em uma de suas idas a sua terra natal, o autor relata - de forma amargurada - uma comovente experiência ao ir comprar frutas nas ruas de Burkina Fasso:

"... a primeira vendedora que correu entre as barraquinhas para me trazer sua cesta de frutas 'ganhou o dia', como eles dizem: comprei tudo e paguei o dobro do que ela pediu. Olhou-me espantada, enxugando o suor que lhe escorria na testa negra - Uagadugu em fevereiro tem a suavidade de um vulcão em ebulição. Em um francês deliciosamente aproximativo, perguntou se eu queria mais alguma coisa do resto do troco. Pedi ao motorista (que me acompanhava) para explicar em mossi que não, que o dinheiro a mais era gorjeta, que eu admirava o esforço dela - era preciso mesmo muito esforço para passar o dia todo debaixo do sol duro e escaldante à espera de hipotéticos sompradores de laranja. Era uma adolescente de 16 anos de sorriso tímido e ao mesmo tempo intimidante. Perguntei se ela ia à escola. Abaixou o olhar e explicou que teve de abandonar os estudos e só fazia isso da vida: vendia frutas para ajudar a mãe.

Nesse momento, uma velhota que observava nossa conversa, sentada em um engradado ali perto, levantou-se e foi chegando com dificuldade. Olhava com uma tristeza vazia, era o nada contemplando o vácuo. Fez uma ligeira careta que interpretei como sorriso e disse umas palavras que o motorista traduziu sem jeito:

- É a mãe da garota. Propõe que o senhor leve a filha dela.
- Levar a menina comigo? Para onde e para fazer o quê?
- O que o senhor quiser - explicou ele, traduzindo as instruções da senhora. - Pode trabalhar de cozinheira ou ser sua mulher.

Pego de surpresa, tentei confirmar se havia entendido bem a proposta inesperada. O sorriso desdentado da mulher ficou mais nítido e percebi, por seu olhar ansioso, que ela aguardava mesmo uma resposta.

- Sou estrangeiro e estou só de passagem por aqui...
- Não tem importância.
- Diga que posso ser casado e estar feliz com minha família...
- Nesse caso, ela fica sendo sua segunda mulher! - respondeu a velha sem pestanejar...

A garota seguia a conversa com ar indecifrável. Eu me perguntava se o olhar gentil que ela dirigia a mim não era por medo da mãe.

- O que a menina pensa do que a mãe está dizendo? - indaguei ao motorista, convencido de ter assim um argumento de peso para recusar a proposta indecente.

A pergunta tornou a conversa um pouco mais séria, e o tradutor mudou o tom para transmitir o que perguntei. Sem se dar por achada, a velha disse que conhecia muito bem a filha para afirmar que era da mesma opinião. E, para mostrar que não desejava obrigar a garota, propôs que ficássemos a sós por uns minutos para tratar do assunto. "O senhor vai ver que a minha filha gostaria de ir embora com o senhor" (...)

-  Nada disso! - Insisti. - Não é preciso. Sua filha não me conhece, a senhora também não. Não é possível acertar um casamento em poucos segundos, no meio das barracas de um feira. Talvez eu seja um velhaco...

- Não acho.
- ... ou um traficante de drogas...
- Minha filha é inteligente, bem-educada, cozinha perfeitamente e sabe fazer tudo muito bem. O senhor não vai se arrepender... E, se por caso, depois da experiência, o senhor não quiser, pode trazer de volta. Sem problema...

Sem problema?

A garota continuava calada, sorridente, tímida. Dei uma olhada para tentar saber o que achavam dessa conversa as outras vendedoras de frutas. Impossível interpretar o jeito calmo e despreocupado delas.

Por que eu?

Teria ficado impressionada com o imenso carro oficial e a solicitude do motorista, provas do meu poder e importância? Seria por causa do dinheiro - por eu ter pago bem mais do que valiam as frutas? A velha alcoviteira passaria o dia inteiro no mercado, oferecendo a afilha a todos os clientes que chegavam em um carro de luxo?

- Eu olhei para o senhor, confio no meu instinto e no meu coração. Tenho certeza de que é gente boa. Minha filha seria feliz com o senhor. Sei que a minha filha ama o senhor.

Explicação talvez satisfatória para o meu ego, mas não para o meu entendimento.

- Minha filha sofre muito aqui no mercado, e eu sofro por vê-la sofrer.

Agora sim! Tratava-se apenas de tirar a bela adolescente da miséria, de fazer um investimento. Agradeci a oferta e fui embora sob os olhares desolados da mãe e da filha. E pensando em Keats: 'sou um covarde, não posso aguentar a dor de ser feliz '. "


MONGA, Célestin. Niilismo e Negritude. São Paulo: Martins fontes, 2010.


          

"O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons." (Martin Luther King)




Sim, sou um negro de cor
Meu irmão de minha cor
O que te peço é luta sim
Luta mais!
Que a luta está no fim...

Cada negro que for
Mais um negro virá
Para lutar
Com sangue ou não
Com uma canção
Também se luta irmão
Ouvir minha voz
Oh Yes!

Lutar por nós...
Luta negra demais
É lutar pela paz
Luta negra demais
Para sermos iguais

Sim, sou um negro de cor
Meu irmão de minha cor
O que te peço é luta sim
Luta mais!
Que a luta está no fim...

Cada negro que for
Mais um negro virá
Para lutar
Com sangue ou não
Com uma canção
Também se luta irmão
Ouvir minha voz
Oh Yes!
Lutar por nós...
Luta negra demais
É lutar pela paz
Luta negra demais
Para sermos iguais


(Simonal/ R. Bôscoli)

terça-feira, 21 de junho de 2011

la littérature

"... o livro deve ser o machado que quebra o mar gelado em nós"

(Franz Kafka)


Há muito tempo se discute a chegada de uma nova era, a era digital, tecnológica, avançada: esta era chegou, e com ela diversas novidades apareceram, com seus prós e contras. Dentre as questões surgidas, há pelo menos uma bastante polêmica: o fim do livro impresso. Com o conhecido e já relativamente bastante utilizado e-book – livros eletrônicos – vemo-nos na eminência de não mais manejar o bom e velho livro de papel.
Esta questão reuniu dois grandes estudiosos do assunto, numa discussão inteligente e animada, no recém lançado Não contem com o fim do livro (Rio de Janeiro, Record, 2010). Com efeito, Umberto Eco e Jean-Claude Carrière trazem ao leitor um mundo de conhecimentos sobre aquilo que para eles representa a própria existência: o livro. Mediada pelo jornalista e ensaísta Jean-Philippe de Tonnac, a conversa revela-se extremamente interessante e cheia de surpresas: de um lado Umberto Eco, escritor, filósofo, doutor honoris causa em diversas universidades do mundo, autor de vários romances, dentre eles o aclamado O nome da Rosa, sucesso de vendas e traduzido para mais de quarenta idiomas; de outro lado Jean-Claude Carrière, renomado roteirista, escritor, ator, diretor, tendo assinado roteiros de produções cinematográficas célebres, como Belle de Jour, dentre outras, além de inveterado bibliófilo.
A história e a memória do livro são arduamente defendidas pelos dois intelectuais, sendo que a sua invenção chega a ser comparada à invenção da roda: uma vez inventados, não há mais como reinventá-los, apenas aperfeiçoá-los. Na questão dos livros eletrônicos, Umberto Eco pergunta: “o livro irá desaparecer em virtude do surgimento da internet?”. E é ele mesmo que responde: “para ler, é preciso um suporte. Esse suporte não pode ser apenas um computador”. E ainda insiste: “Logo, se devo salvar alguma coisa que seja facilmente transportável e que deu provas de sua capacidade de resistir às vicissitudes do tempo, escolho o livro.”
A conversa entre Eco e Carrière passa por todos os caminhos e percalços sofridos por suas histórias de amor com o livro... e os declarados amantes de objeto questionam até mesmo a possibilidade de nossa memória chegar a ser uma prótese, chegando à conclusão: “depois de aprendermos tudo natural ou artificialmente nos restará o ato de aprender a aprender”. Hoje, com o poder da informação em nossas mãos, por meio de nossos computadores, devemos – em nossas pesquisas – saber filtrar cada informação, cada resultado obtido na internet, exercitando assim nosso senso crítico. Essa questão levantada na conversa levou Umberto Eco a refletir sobre a tecnologia, lamentando, em determinado momento, ter salvado um de seus conhecidos romances num disquete e tê-lo perdido. Assim, afirma: “se eu tivesse batido meu romance à máquina ele ainda estaria aqui”.
Ainda nesta questão, Carrière defende que “o que a internet nos fornece é na realidade uma informação bruta, sem nenhum discernimento, sem controle das fontes nem hierarquização”. Argumento, aliás, bem fundamentado, já que se antigamente fazíamos nossas pesquisas diretamente por meio do livro, hoje nos deparamos com a possibilidade de sermos enganados com tanta informação que nos é apresentada na internet. Isso requer certo cuidado do pesquisador, lembra o autor, mais uma vez clamando pela salvação do livro.
Na perspectiva defendida pelos debatedores, o livro não é apenas o objeto livro, mas algo que, ao contrário, apresenta diversas dimensões, sendo que cada leitura e cada leitor o modifica: seja ele curto ou extenso, conhecido ou não, o livro veio, foi perseguido, queimado, censurado, mas permaneceu. O livro de papel, aquele que começou com os grandes e pesados pergaminhos é hoje, graças a grandes escritores, motivo para viagens, leilões e até horas e horas dentro de uma livraria. Durante toda conversa, Umberto Eco e Jean-Claude Carrière falam do que foi e do que é o livro. Discutem o papel da leitura e a até a importância dos livros que não lemos! Um livro nos serve não apenas como um objeto de leitura, mas é também um objeto de conhecimento e até um grande companheiro, por meio do qual podemos dividir nossos desejos e anseios. E os autores vão além: afirmam ainda que uma biblioteca é também um grupo de indivíduos, de amigos, que nos fazem companhia, e nos protegem da ignorância.
O livro trouxe e sempre trará o saber: assim ocorreu com aqueles livros que foram censurados e queimados exatamente porque traziam conhecimento, e, como sabemos, conhecimento é poder.  Assim, como cada um de nós temos nossas experiências e nossas histórias, o livro também tem sua trajetória, o que é superiormente discutido pelos dois pensadores nessa obra. E vale aqui ainda a ressalva de Carrière: “você nunca sentirá frio no seio de sua biblioteca. Ei-lo protegido, em todo caso, contra os perigos gelado da ignorância.”
Pelo diálogo erudito e cheio de humor, vale à penar ler Não contem com o fim do livro... e, é claro, em prol da sobrevivência do livro!

ECO, Umberto & CARRIÈRE, Jean-Claude. Não contem com o fim do livro. Rio de Janeiro, Record, 2010.